Fracasso do neoliberalismo gera crise mundial
“Os arquitectos, especialistas e administradores da nova ordem económica internacional, economistas e políticos, à medida que sua fantasia se desfaz, somente podem compreender que perderam o controle dos acontecimentos”.
Fidel Castro analisava assim, em 2001, a situação internacional:
O presidente de Cuba, Fidel Castro, pronunciou no início do mês, através da televisão cubana, um importante discurso em que analisa a situação política internacional, a crise económica mundial e a possíveis consequências para Cuba. Após demonstrar, com abundantes exemplos, que «a crise económica não é consequência dos ataques de 11 de Setembro nem da guerra contra o Afeganistão», Fidel conclui que «a crise é consequência do estrondoso e irreversível fracasso de uma concepção económica e política imposta ao mundo: o neoliberalismo e a globalização neoliberal.» Na sua intervenção, de que reproduzimos extractos, Fidel Castro reafirma a convicção cubana da necessidade de lutar «contra o terrorismo e contra a guerra».
(...) «Para caracterizar a situação actual, pode-se afirmar, numa síntese bem resumida, que em meados da década de 90, quando a globalização neoliberal se estendia por todo o planeta, os Estados Unidos, como dono absoluto das instituições financeiras internacionais e a partir de sua imensa força política, militar e tecnológica, atingiu a mais espectacular acumulação de riqueza e poder que se conheceu na história.
«Mas o mundo e a sociedade capitalista entravam em uma etapa inteiramente nova. Agora, apenas uma parte insignificante das operações económicas se relacionava com a produção e o comércio mundiais; três triliões de dólares, em operações especulativas, vinculadas com as moedas e outros valores, tinham lugar a cada dia; nas bolsas dos Estados Unidos, os preços das acções cresciam como espuma, muitas vezes sem nenhuma relação com os ingressos e lucros das empresas. Criaram-se verdadeiros mitos: já não haveria mais crises; o sistema podia regular-se, havia criado os mecanismos necessários para avançar e crescer ininterruptamente. A tal extremo se chegou na criação de riquezas puramente imaginárias, que houve casos de acções em que, havendo-se investido mil dólares, o seu valor se incrementou 800 vezes, em apenas oito anos. Era como um imenso globo, que se inflava até ao infinito.
«Conforme se criavam tais riquezas virtuais, investia-se, gastava-se, desperdiçava-se. A experiência histórica foi totalmente ignorada. A população mundial havia-se multiplicado por quatro em apenas cem anos. Bilhões de seres humanos não participavam nem desfrutavam absolutamente daquelas riquezas. Eram fornecedores de matérias-primas e fonte de mão-de-obra barata, mas não consumiam, nem podiam ser consumidores. Não constituíam mercado, nem o mar quase infinito, aonde fosse desaguar o imenso rio de produtos que, em feroz competição, saíam dos equipamentos, cada vez mais produtivos e menos geradores de empregos, de um privilegiado e exíguo grupo de países industrializados.
«Uma análise elementar bastava para compreender que aquela situação era insustentável.
«Parece que ninguém se dava conta de que qualquer coisa aparentemente sem importância, que ocorresse na economia de uma região do mundo, poderia estremecer o resto da estrutura económica mundial.
As forças que decidem
«Os arquitectos, especialistas e administradores da nova ordem económica internacional, economistas e políticos, à medida que sua fantasia se desfaz, somente podem compreender que perderam o controle dos acontecimentos. Outras forças são as que decidem: as das grandes e crescentemente poderosas e independentes empresas transnacionais e as persistentes realidades, à espera de que o mundo mude de verdade.
«Em Julho de 1997, explode a primeira grande crise do mundo neoliberal globalizado. Os tigres desfizeram-se. O Japão ainda não conseguiu recuperar e o mundo ainda sofre as consequências.
«Em Agosto de 1998, apresenta-se a chamada crise russa, que, apesar da sua insignificante contribuição para o Produto Interno Bruto mundial, de apenas 2%, estremeceu e, em questão de horas, fez baixar centenas de pontos as bolsas de valores dos Estados Unidos.
«Em Janeiro de 1999, apenas cinco meses depois, produz-se a crise do Brasil.
«Em esforços associados, o Grupo dos Sete, FMI e Banco Mundial tiveram de empenhar-se a fundo, para impedir que a crise se estendesse por toda a América do Sul, assestando um golpe demolidor às bolsas de valores dos Estados Unidos.
«Desta vez, o inevitável: a crise começou pelos Estados Unidos, a princípio apenas imperceptivelmente. Desde meados do ano 2000 começaram a observar-se os primeiros sintomas, com uma diminuição constante do ritmo da produção industrial.
«Em Março desse mesmo ano, o índice Nasdaq, da chamada tecnologia de ponta, já havia começado a cair.
Produz-se igualmente um enorme crescimento do déficit comercial: em 1999 havia sido de 264,9 mil milhões, e no ano 2000 elevou-se a 368,4 mil milhões.
«No segundo trimestre do ano 2000, o Produto Interno Bruto havia atingido um crescimento de 5,7%; no terceiro trimestre, somente 1,3%.
«Desde Outubro de 2000, começou a cair a produção do sector industrial.
«Apesar disso, no final do ano 2000, os pontos de vista sobre as perspectivas e os prognósticos da economia mundial eram ainda bastante optimistas. A realidade logo começou a mostrar-se francamente adversa.
«Desde o princípio de 2001, o FMI, o Banco Mundial, a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico (OCDE), a Comissão Europeia, bem como instituições privadas, viram-se na necessidade de ajustar em baixa as suas previsões de crescimento para 2001, nas diversas regiões.
«O FMI prognosticou, em Maio, 3,2% de crescimento global no ano 2001. Para os Estados Unidos, em particular, a projecção de crescimento nesse mês era de 1,5%, e para a zona de euro, era de 2,4%. O Japão atravessava a sua quarta recessão em 10 anos, e prognosticava-se um decréscimo de menos 0,5% no ano.
«O director geral do FMI, Horst Kohier, num discurso pronunciado em Genebra, diante do Conselho Económico e Social das Nações Unidas (ECOSOC), em 16 de Julho de 2001, assinalou: "O crescimento económico está perdendo o ritmo no mundo inteiro. Isso poderá ser incómodo para as economias avançadas (os países desenvolvidos e ricos), mas será uma verdadeira fonte de dificuldades para muitos países com mercados emergentes e em desenvolvimento (os países pobres e subdesenvolvidos) e um retrocesso na luta contra a pobreza."»
Neoliberalismo e globalização
«Como se pode verificar, a crise económica não é consequência dos ataques de 11 de Setembro nem da guerra contra o Afeganistão. Isso só pode ser dito por ignorância ou por interesse em ocultar a sua verdadeira causa. A crise é consequência do estrondoso e irreversível fracasso de uma concepção económica e política imposta ao mundo: o neoliberalismo e a globalização neoliberal.
«O acto terrorista e a guerra não originaram a crise, mas agravaram-na muito. O que vinha avançando aceleradamente, precipita-se de forma inoportuna e abrupta. A humanidade tem agora que enfrentar três problemas extremamente sérios, os quais se potencializam entre si: o terrorismo, a guerra e a crise económica.»
(...) «A acção militar no Afeganistão está repleta de perigos. É uma região sumamente conflituosa, onde dois grandes países [Índia e Paquistão] lutaram várias guerras. Existem entre eles profundos antagonismos nacionais e religiosos. A população do território em disputa é maioritariamente muçulmana. Inflamados os ânimos, ninguém pode assegurar que não estoure uma guerra. Ambos possuem armas nucleares. Esse risco é tão grave quanto o de que a guerra desestabilize o governo do Paquistão. Ele está colocado em uma situação extremamente complexa. Dali surgiram os talibãs, que compartilham a mesma etnia pashtum, com um número indeterminado não inferior a dez milhões de paquistaneses. Utilizo o menor número que se menciona. Compartilham também, com fervor fanático, as mesmas crenças religiosas.
«Os militares norte-americanos costumam ser estudiosos da sua profissão. Conheci vários deles quando, depois de passarem à reserva, visitaram Cuba como académicos. Escrevem livros, contam histórias e realizam análises políticas. Não estranhei a informação, veiculada em 29 de Outubro na revista The New Yorker, de que existia um plano de contingência para tomar posse das ogivas nucleares do Paquistão, se um grupo radical ocupasse o governo desse país.
«É absolutamente impossível que os estrategas norte-americanos não tenham previsto esse risco real. Cada bomba que cai sobre o Afeganistão, cada imagem de crianças mortas, agonizando ou sofrendo de horríveis ferimentos, incrementa esse risco. O que não imagino é qual será a reacção dos responsáveis por proteger essas armas, ante essa possível acção, que é tão pública como a Crónica de uma Morte Anunciada, de García Márquez.
«Ignoro o que os serviços norte-americanos devem saber muito bem: onde se guardam essas ogivas nucleares, como se guardam e como se protegem. Tento imaginar - e não é fácil - como seria uma acção desse tipo com tropas de elite. Talvez alguém conte algum dia como se faz. Mas ainda me custa imaginar qual seria o quadro político depois de uma acção desse tipo, e a luta então seria contra mais de cem milhões de muçulmanos adicionais. O governo dos Estados Unidos tem negado a notícia desse plano de contingência. Era de se esperar. Não tinha outra alternativa.»
Os amigos dos EUA
«A pergunta mais lógica que me posso fazer é se acaso os chefes de governo e estadistas amigos dos Estados Unidos, com longa experiência prática e política, não viram os perigos potenciais assinalados, e por que não os advertiram, por que não os dissuadiram. Está provado que, aos Estados Unidos, os seus amigos temem-nos, mas não os estimam.
«É sempre difícil fazer conjecturas sobre esses temas. De uma coisa, sim, posso estar absolutamente seguro: basta que vinte mil ou trinta mil homens utilizem métodos inteligentes de guerra irregular, os mesmos que os Estados Unidos querem empregar, e essa luta pode durar vinte anos. É absolutamente impossível reduzir os adversários afegãos numa guerra irregular, com bombas e mísseis, seja qual for o calibre ou a potência dessas armas, num terreno como o daquele país.
«O momento psicológico mais difícil já eles passaram. Perderam tudo: família, bens, edificações. Não lhes resta absolutamente nada que perder. Nenhuma lógica indica que deporão armas, ainda que os seus chefes principais sejam eliminados. O emprego de armas nucleares tácticas, como sugerem alguns, seria multiplicar o erro por cem e, junto com ele, uma irresistível crítica e um isolamento universais. Por isso, nunca acreditei que tais tácticas tenham passado seriamente pela cabeça dos que dirigem aquele país, ainda que no meio da maior ira.
«São reflexões que expresso em voz alta. Penso que ser solidário com o povo norte-americano, que perdeu milhares de vidas inocentes, incluindo meninos e meninas, jovens e anciãos, homens e mulheres, numa agressão feroz, é dizer com franqueza o que se pensa. Que não seja inútil o sacrifício daquelas vidas; que sirva para salvar muitas vidas, para demonstrar que o pensamento e a consciência podem mais que o terror e a morte.
«Não sugerimos que crime algum que se cometa sobre a Terra fique sem castigo. Não tenho elementos de julgamento para acusar ninguém; mas, se os culpados são os que o governo dos Estados Unidos trata de castigar e eliminar, ninguém deve ter a menor dúvida de que a forma como o está fazendo engendrará altares, onde milhões de homens e mulheres venerarão como santos aos que ele considera seus assassinos.
Mais valeria um gigantesco altar à paz, onde a humanidade renda tributo a todos os que tenham sido vítimas inocentes do terror e da violência cega, seja uma criança norte-americana ou uma criança afegã. «Quem o diz é um adversário da política dos Estados Unidos, que crê ter uma ideia da história, da psicologia e da justiça humana; não um inimigo.
Parar o pânico é reduzir o perigo
«Havendo chegado a esse ponto, falta-me abordar um último tema.
«É absolutamente incompreensível o que está ocorrendo com o antraz. Criou-se um verdadeiro e sincero pânico. Os estoques de medicamentos contra essa bactéria esgotam-se. Muitas pessoas adquirem máscaras e artefactos de todo o tipo, alguns dos quais custam milhares de dólares.
«As extravagâncias podem provocar mais danos que a própria enfermidade. Quando uma enfermidade surge, qualquer que seja a causa, o essencial é advertir e informar a população em que consiste e que medidas deve tomar para preveni-la, diagnosticá-la ou combatê-la.
(...) «O tipo de e reacção psicológica criada pelo antraz converte a sociedade norte-americana em refém dos que desejam fazer-lhe dano por essa via, sabendo de antemão que semearão o terror.
«O nosso país teve de enfrentar, em numerosas ocasiões, novas enfermidades que afectam a pessoas, cultivos e rebanhos, muitas delas introduzidas intencionalmente. Não por acaso, o país conta com 67.128 médicos e milhares de técnicos em sanidade vegetal e animal. A nossa população sabe imediatamente o que deve fazer.
(...) «Nenhum país do mundo possui mais centros de pesquisa, laboratórios e medicamentos, ou capacidade de produzi-los ou adquiri-los, para combater essa e qualquer outra enfermidade, que Estados Unidos.
Ante riscos reais ou imaginários, presentes ou futuros, não há outra alternativa que educar a população para enfrentá-los. Assim temos feito, os cubanos.
«Devem ser analisadas as causas que originaram o pânico. Certamente não se poderia afirmar que os Estados Unidos estejam isentos de riscos de acções terroristas. Mas não creio que, nas actuais circunstâncias de alerta generalizado e com as medidas tomadas, algum grupo, interno ou externo, possa organizar uma acção coordenada, organizada em todos os detalhes durante longo tempo, sincronizada e executada com precisão, como a realizada em 11 de setembro. A meu juízo, o maior risco pode vir de acções individuais, ou de poucas pessoas, de dentro ou do exterior, que podem ocasionar danos de maior ou menor magnitude. Nenhum deve ser subestimado. Mas, tão importante ou mais que as medidas preventivas frente a tais riscos, é desarmar psicologicamente aos potenciais executores: uma gama que vai desde os que queiram realizá-lo por extremismo político, espírito de vingança ou ódio, até um número que não se deve subestimar de indivíduos frustrados, desequilibrados ou dementes, que se sintam atraídos pela espectacularidade ou pelo desejo de serem actores de factos célebres, em cujas mãos estaria enlouquecer o povo dos Estados Unidos, pelo dano que está ocasionando o envio de cartas com ou sem antraz. Faça-se todo o possível para que cesse o pânico, as extravagâncias e o caos, e diminuirá o perigo.
Pózinhos e coisas estranhas
«A Cuba também chegam e aqui circulam cartas e cartões com pozinhos e coisas estranhas. Cento e dezasseis foram detectadas, entre 15 e 31 de Outubro; 72 procedentes do exterior: 36, dos Estados Unidos, 8 da Grã Bretanha, 3 do Canadá, 2 da República Checa, 2 da Espanha, 2 da Holanda, 1 da Dinamarca, 1 do México, 1 da Austrália, 1 do Brasil, 1 da Alemanha, 1 do Chile e 1 dos Emirados Árabes. Vinte e cinco delas estavam dirigidas a mim. Agradeço a amabilidade dos remetentes.
(...) «Nem um só trabalhador dos Correios, do Palácio ou dos laboratórios foi contaminado. Gozamos de perfeita saúde. Não houve sensacionalismo, escândalo, alarme, nem pânico. Ninguém adquiriu medicamentos, nem máscaras antigases. Conto-lhes o episódio unicamente para ilustrar o que disse sobre o incompreensível do ocorrido com o antraz nos Estados Unidos. Ainda que uma bactéria fosse introduzida, não haveria produzido pânico. Todo mundo saberia o que deve fazer. O que, com toda certeza, seria muito difícil, é que de Cuba saísse uma carta com vírus ou bactérias patogénicas para outro país. Sentimos prazer em saber que duas cartas dirigidas aos Estados Unidos não puderam chegar, nem as outras três, a outros países. Assim será a nossa cooperação, em todos os sentidos, com todos os povos do mundo. Tanto os nossos médicos e outros especialistas, como os nossos técnicos, os nossos centros de pesquisa e nossa modesta experiência estarão a serviço da luta contra o terrorismo biológico e outras formas de terror.
«Se está provado que, aos Estados Unidos, os amigos temem-nos, mas não os estimam, Cuba não teme minimamente o imenso poder desse país, mas é capaz de estimar o seu povo.»
publicado no Avante! nº 1.459, em 15 de novembro de 2001
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